Perdoando Deus - Clarice Lispector

  Quantos de nós não passamos pela vida caminhando descontraídos, pulando de um momento feliz a outro entremeado de pequenos obstáculos que não nos causam maiores prejuízos. E num desses momentos de tranquilidade nos sentimos leves e felizes acreditando que o mundo é incrível e que somos íntimos de Deus sentindo um amor puro e pleno que nos preenche. É uma ideia maravilhosa, não? Momento ideal, ponto alto da existência, você sente que pode fazer qualquer coisa.

  Mas eis que inadvertidamente aparece na sua frente o seu pior medo, bem ali, sem filtros nem cortes e você quase esbarra com ele tocando-o. A reação de repulsa é instantânea e brutal; você sai correndo sem pensar e só para a uma distância segura com o monstro completamente fora de vista, mas já é tarde demais. Tudo veio abaixo, toda a benevolência, o amor e a epifania que você acreditou serem reais e sólidos foram manchados por aquilo que mais detesta. E por um tempo a revolta e a indignação vão lhe dar as mãos, afinal todo o amor a que nos entregamos, este momento perfeito foi arruinado, fomos arrancados dele de uma vez só. Então também nossa crença em um Deus maravilhoso se esvai e clamamos em altos brados contra a Divindade, contra a vida por nos ter submetido a tal situação.

  Mas não se engane… Este algo tão terrível que nos causa verdadeiro pavor nada mais é do que a nossa própria natureza, aquilo que somos de fato. Não amaríamos algo ou alguém que nos espelhasse os próprios erros cometidos, assim como admiramos pessoas que nos remetem às nossas qualidades(muitas vezes ainda adormecidas). Então para que haja em nós a real capacidade de amor é preciso primeiro entender e superar o “algo” causador do medo, procurando vê-lo com naturalidade; não somos exemplo de virtude e ainda conservamos sentimentos e impulsos desses erros mesmo que estejam contidos. Diante dessa questão, qual o nosso direito de exigir que o mundo seja perfeito apenas para não ferir nossos olhos mantendo assim a ilusão?

   Imperfeitos que somos ainda esperamos viver uma vida de utopia acreditando que o amor se sustenta apenas no conveniente, quando na verdade ele é forjado e nutrido majoritariamente nas “inconveniências” da vida. Se não for possível amar a própria natureza nua e crua, é impossível conseguir amar o mundo que nada mais é que um espelho.

  Recomendo a vocês a leitura de mais este conto incrível e provocativo da autora.


 “Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse.”


 Boas leituras!!




Comentários